sexta-feira, 8 de abril de 2016

A Crítica Política do Saber em Foucault.

Esse foi o título da tese de doutorado que defendi.  Aqui estão o resumo, a introdução e a apresentação da defesa. A leitura desses três textos permite se ter uma ideia do que foquei para se compreender o pensamento de Foucault. 



RESUMO


Nosso objetivo é mostrar que a crítica política do saber em Foucault está fundamentada no seu empirismo histórico e o cuidado de si ser epistêmico. E a partir daí, como ele desenvolveu seu pensamento. Quer dizer, ele recusou pensar os acontecimentos históricos a partir de universais, teleologias e filosofias trans-históricas e se deteve apenas nos fatos singulares, isto é, acontecimentos e práticas. Foi por isso que Foucault se definiu como um positivista feliz. E assim sendo, essas duas características de seu pensamento, um empirismo histórico e positivismo feliz, tiveram como consequência o que Foucault chamou de momento cartesiano. O pensamento de Foucault é um desdobramento do seu empirismo histórico e, por isso, essa tese tem o foco em como seu empirismo e positivismo geraram a recusa do racionalismo que culminou no momento cartesiano e, assim, sendo o cuidado de si epistêmico. E, principalmente, como a verdade se associa ao poder na constituição e dominação da subjetividade do sujeito. Uma das consequências do que Foucault chamou de o momento cartesiano foi a razão cindida com a eliminação do cuidado de si no acesso ao conhecimento que permitiu surgir as sociedades industriais-técnicas-científicas-burocráticas, como as denominou André Berten. A exclusão do cuidado de si efetuado por Descartes do ato de conhecer, alterando a hierarquia do conhecimento inicial da filosofia antiga, foi o problema epistemológico diagnosticado por Foucault que explica sua filosofia da ciência e filosofia política. O cuidado de si sempre foi epistêmico. E, assim sendo, o objetivo de nossa tese é mostrar que a epistemologia de Foucault, tendo, na eliminação do cuidado de si do ato de conhecer, efetuado no que ele chamou de o momento cartesiano, permitiu surgir a sujeição na subjetividade do sujeito. Esse único problema aqui colocado será resolvido com a comprovação desse ponto de vista através dos excertos dos textos de Foucault em sua trajetória, nos quais critica o racionalismo de Descartes, principalmente sob o ponto de vista da eliminação do cuidado de si no ato de conhecer.

Palavras-chave: Empirismo histórico. Positivismo feliz. Momento cartesiano.

1 INTRODUÇÃO



É verdade que a filosofia, em todo caso depois de Descartes, sempre foi ligada no Ocidente ao problema do conhecimento. Não se escapa disso. Alguém que se pretenda filósofo e que não se questione sobre ‘o que é o conhecimento’ ou ‘o que é a verdade’, em que sentido poder-se-ia dizer que é um filósofo? E digo em vão que não sou um filósofo, se, todavia, é da verdade que me ocupo, apesar de tudo, sou um filósofo. [1]
            

 Esta é uma tese de filosofia sobre o conhecimento nas reflexões filosóficas de Michel Foucault. Ele foi chamado de estruturalista, nominalista, anarquista pós-moderno, entre outros rótulos. Sempre negou ser adepto de algumas dessas correntes filosóficas ou políticas. Só vamos nos remeter ao que ele confirmou ser sua filiação filosófica. O pensamento de Foucault aqui vai ser lido a partir do nosso ponto de vista, que é a ênfase no seu empirismo histórico e o cuidado de si ser epistêmico. Isso quer dizer que Foucault rejeitou todos os universais, teleologia e todo tipo de metafísica ao empreender suas análises históricas das relações entre verdade, poder e sujeito.
Seu pensamento foi chamado de a priori histórico e definido como um empirismo histórico. Empirismo porque procurava mostrar, na história, como as coisas foram recriadas, deformadas pelas práticas discursivas, resultado do que chamou de epistemes de cada época. Ele mesmo colocou que seu pensamento foi sempre sobre as relações entre verdade, poder e sujeito. E mostrou que existia então o pré-discursivo, que era a diversidade das coisas da natureza, e o discursivo, no quais as coisas passaram aparecer a partir de um discurso. Ou seja, existiam as coisas, sem as palavras sobre elas que, em algum momento da história, esse pré-discursivo era transformado, com as palavras sobre elas, em discurso. As coisas, ao deixarem de ser pré-discursivas, passam a ser discursos. Quer dizer, a partir de pressupostos de cada época que formam epistemes, que organizam o saber e geram os discursos. O saber assim constituído em discursos se insere, principalmente, nas ciências humanas, nas relações de poder. E aí se soma a outra questão mais ampla, que foi sua recusa das teleologias e filosofias da história que analisavam os fatos históricos como consequência de postulados filosóficos vindos de filosofias a-históricas.
O positivismo de Foucault não foi o que se entende pelo positivismo de Auguste Comte. O que ele chamou de positivista feliz foi analisar os fatos na história sem nenhum pressuposto de uma filosofia idealista pré-existente e nenhuma essência escondida a ser decifrada neles. Ele se afasta do positivismo de Comte para o seu positivismo feliz porque se afasta das leis que regem os fenômenos e a comprovação dessas leis através de testes e experiências. A mesma coisa ele fez com o poder analisando o seu exercício. O exercício do poder, empiricamente, é o que de fato se percebe como sendo o poder. O que se constata são relações de poder nas suas práticas. Estado e governo são organizações para que se exerçam relações de poder, ou seja, expressões e consequências das estratégias dessas relações. E toda análise do poder feita por Foucault foi mostrar as estratégias que são usadas nas relações de poder em cada época que aqui vamos descrever para confirmar o que estamos dizendo sobre seu empirismo. E, nessas estratégias, se insere como uma tecnologia de exercício de poder a verdade. Em Foucault, o poder não é explicado como um resultado das lutas de classes ou das repressões ou, ainda, do contrato social. Ele é analisado nas relações de poder e a consequência principal analisada dessas relações, sob esse ponto de vista empírico, foi o surgimento do sujeito. Em vez de analisar o poder como uma substância, ele analisou o resultado dos exercícios de poder no sujeito. Por isso, seu objetivo foi fazer uma análise da verdade e sua relação com o que ele chamou de sujeito, isto é, o assujeitado como resultado dos exercícios de relações de poder. Seu problema foi a política do verdadeiro. Não mais uma ideologia sendo falsa, se diferenciando da verdade como sinônimo de ciência, mas a própria verdade que se relacionava com o exercício do poder. Ele assim efetuou, em sua crítica política do saber, uma epistemologia política. E é sobre ela que vamos discorrer.
Ao recusar a filosofia do sujeito cognoscente, ele se afastou de Descartes e da fenomenologia. Foucault (2014a), afirmou que, para ele, sujeito é o sujeito sujeitado (le sujet assujetti) e não o sujeito cognoscente cartesiano. O sujeito é resultado de relações de poder. Não se nasce sujeito, torna-se sujeito. E é nessa analítica epistemológica e política da constituição do sujeito que se insere o momento cartesiano. O momento cartesiano foi a eliminação do cuidado de si no ato de conhecer que explica a causa epistemológica da transformação dos seres humanos em sujeitos.
Na Grécia antiga, para se ter acesso à verdade era necessário o cuidado de si, subordinar o conhece-te a ti mesmo. Descartes alterou essa hierarquia eliminando o cuidado de si do conhece-te a ti mesmo para se acessar a verdade. Ocorreu aí uma alteração na metodologia da produção do conhecimento. Por isso, o nosso foco, que acreditamos ser original, é o cuidado de si ser epistêmico diagnosticado por um filósofo empirista histórico. Foucault usou o nome de Descartes para mostrar esse momento de acesso ao saber com reticências. Embora em toda sua obra ele se afaste do pensamento de Descartes e se aproxime do empirismo em oposição ao racionalismo, ele ponderou sobre as defesas de Pierre Hadot de Descartes sem deixar de se afastar do seu racionalismo. Descartes não é para Foucault a única causa que gerou o que ele chamou de momento cartesiano. O momento no qual se eliminou o cuidado de si de como se acessa a verdade foi o que lhe interessou. A esse momento ele deu o nome de cartesiano, para caracterizar quando surgiu esse processo epistemológico de eliminação do cuidado de si no ato de conhecer.
Assim sendo, o problema único que pretendemos colocar e resolver é o nosso objetivo de mostrar que sua metodologia foi resultado do seu empirismo histórico, positivismo feliz e o momento cartesiano. E com a qual ele pôde pesquisar seu objeto de pesquisa que foram as relações entre verdade e poder na constituição do sujeito sujeitado e colocar o enfrentamento do poder, por esse sujeito, através de fazer reemergir o cuidado de si eliminado no momento cartesiano. Portanto, uma epistemologia política.
E dito mais resumidamente, essa tese é sobre o cuidado de si ser epistêmico, que está claramente no que ele chamou de momento cartesiano. Isto é, como o seu empirismo histórico o levou à descoberta que o cuidado de si é epistêmico.
Sobre a eliminação do cuidado de si, que estamos aqui colocando ser uma questão epistemológica, não é uma análise solitária do seu pensamento. O que fizemos foi isolar a metodologia na qual o autor estudado pesquisou seu objeto de pesquisa.
Esse problema colocado aqui será resolvido provando com as citações de Foucault, em toda a sua trajetória, como ele se opôs ao método de Descartes para atingir a verdade, principalmente nos excertos que ele mostrou que o pensamento contemporâneo ainda é, em grande parte, influenciado pelo pensamento de Descartes. Coube fazermos então, seguindo seus passos, o que ele inicialmente fez: uma análise do saber, resultado do momento cartesiano e suas consequências com a antropologia filosófica do conhecimento na modernidade, que fez surgir o sujeito objetivado e subjetivado pelas ciências humanas.
Uma das consequências da eliminação do cuidado de si é o que se chamou de razão cindida.[2] Quando se eliminou o cuidado de si no ato de conhecer surgiu uma cisão na razão.  Foucault não está sozinho nessa reflexão. A razão cindida e suas consequências foi uma questão filosófica pensada também por Nietzsche, Horkheimer e Adorno. Nietzsche o fez, à sua maneira, em A Origem da Tragédia, com o apolíneo e o dionisíaco; Horkheimer com sua teoria tradicional em oposição à teoria crítica; e Foucault com a eliminação do cuidado de si do conhece-te a ti mesmo, que ele chamou de momento cartesiano. Ele inicia a crítica a Descartes em História da loucura na Idade Clássica, a detalha em As palavras e as coisas e em muitos outros ditos e escritos. Em A hermenêutica do sujeito se refere ao que chamou de o momento cartesiano, que é a complementação final dessa reflexão. O cuidado de si sendo epistêmico, no pensamento de Foucault, foi, portanto, uma questão epistemológica na qual surgiu uma ação política aética a partir de como se acessa a verdade.
Esta tese precisou abranger grande parte do pensamento de Foucault, sob nosso foco aqui explicitado, para confirmar como ele, a partir do seu empirismo histórico e do momento cartesiano, fez sua análise das relações entre verdade e poder na constituição do sujeito, que foi o seu objeto de pesquisa. O que une e comprova essa descrição do seu pensamento será efetuado nos capítulos “A morte do homem”, “O poder não existe” e “A alma, prisão do corpo”. Todos os nossos capítulos têm por único objetivo confirmar como o seu empirismo histórico e o momento cartesiano decifram seu pensamento. Assim sendo, esse foi o nosso único problema: como o seu empirismo histórico e o cuidado de si ser epistêmico decifram o seu pensamento. Portanto, colocado aqui e resolvido com as comprovações e evidências desse nosso ponto de vista nos vários momentos do seu pensamento que será mostrado nos seus textos historiados nos nossos capítulos.
Escolhemos os nomes de três capítulos a partir de suas conclusões principais: “A morte do homem” é sobre o fim da antropologização do saber na modernidade; “O poder não existe” é sobre as práticas e estratégias nas relações de poder; e “A alma, prisão do corpo” é sobre a constituição da subjetividade do sujeito. Entretanto, se tornou necessário colocar um capítulo inicial sobre o cuidado de si e o momento cartesiano que explicam todas essas conclusões.
No primeiro capítulo, “O cuidado de si e o momento cartesiano”, detalhamos como Foucault fundamentou sua epistemologia. Iniciamos mostrando como ele descobriu o cuidado de si como o princípio da filosofia antiga grega com Sócrates, que subordinava o conhece-te a ti mesmo. Esse fato lhe permitiu analisar o conhecimento a partir do que chamou de momento cartesiano. Por isso, nossa ênfase de o cuidado de si ser epistêmico, a partir de seu empirismo histórico, nos parece uma maneira original de analisar o pensamento de Foucault. A originalidade talvez seja explicar todo o pensamento de Foucault a partir da ênfase que damos ao seu empirismo histórico e à nossa conclusão de o cuidado de si ser epistêmico. Nosso objetivo, portanto, é confirmar, em todos os momentos descritos nesses capítulos, essa imanência permanente em todo o seu pensamento. Foi, portanto, imperativo as citações cuidadosamente escolhidas e constantes nesse primeiro e nos outros capítulos para que esse ponto de vista de sua epistemologia tivesse a comprovação necessária.
A finalidade do segundo capítulo, “Foucault e a filosofia contemporânea”, foi, de acordo com esse nosso objetivo, ao analisar as correntes filosóficas com as quais Foucault conviveu, confirmar sua filosofia ser essencialmente uma epistemologia quando ele declarou que se filiou, nessa época, aos que pesquisavam a história da ciência. Por isso, Foucault, com seu interesse na história da ciência, se dedicou às ciências humanas, fez com que pudéssemos confirmar seu interesse pela relação da verdade com a sujeição do sujeito.
O objetivo do terceiro capítulo, “A morte do homem”, foi mostrar como ele decretou a morte do homem como o centro do conhecimento, ou seja, a filosofia do sujeito como consciência. E como surgiu, coerentemente com essa posição epistemológica, a oposição ao sujeito cartesiano, à fenomenologia e ao existencialismo. Assim como se afastou também do estruturalismo e da psicanálise que abalaram essa forma de como se acessar a verdade e gerar o saber, mas tinham uma visão diferente da dele da relação entre verdade, poder e sujeito. Assim sendo, será mostrado como ele elaborou suas ideias principais, como a descontinuidade das epistemes, e, a partir de um empirismo histórico e positivismo feliz, recusou o racionalismo e a filosofia do sujeito e daí decretou a morte do homem. Iniciamos descrevendo toda sua metodologia empírica e seus conceitos principais como o de episteme que permitiram ele chegar a declarar a morte do homem.
No quarto capítulo, “O poder não existe”, vamos mostrar como Foucault fez uma análise do poder como práticas e relações, como ações contra ações, condutas contra condutas, relações de forças. Ele escapou de analisar o poder como uma ideia além dessas ações e suas estratégias porque empiricamente, na história, é só isso o que se percebe.
No quinto capítulo, “A alma, prisão do corpo”, precisamos mostrar como ele chegou ao seu objeto de análise, que foi o sujeito, e como esse sujeito descrito e analisado por ele pode enfrentar o poder com o ressurgimento epistemológico do cuidado de si, que é uma ética que, desde os gregos antigos, é sinônimo de liberdade.


Discurso de apresentação da Tese


O que fizemos, nesse estudo sobre o pensamento de Foucault, foi inicialmente descrever sua metodologia e seu objeto de pesquisa. E focamos no que ele mesmo declarou ser seu procedimento epistemológico. Quer dizer, o que Paul Veyne chamou, sem Foucault contestar, de empirismo histórico e o que Foucault chamou de positivismo feliz. E chegamos à primeira conclusão de que Foucault foi um filósofo que optou pelo empirismo para escrever a história. Portanto, detalhando o nosso objetivo, mostramos que a metodologia de Foucault foi resultado do seu empirismo histórico e teve como principal consequência o que ele chamou de momento cartesiano. 
E, assim sendo, qual foi o objeto que ele aplicou essa metodologia e com a qual pôde pesquisá-lo. Seu objeto de pesquisa foram as relações entre verdade e poder na constituição do sujeito. O que significa sujeito para Foucault se refere ao sujeito sujeitado através da verdade nas relações de poder. E por isso colocou o enfrentamento do poder, por esse sujeito, através de fazer reemergir o cuidado de si eliminado no momento cartesiano. Portanto, uma epistemologia política. Ele foi um filósofo da verdade e suas consequências na constituição do sujeito. Ou seja, o exercício do poder através da verdade.
E então fomos evidenciando nesse nosso trabalho os detalhes mais importantes. Por exemplo, Foucault centrou sua análise epistemológica nas ciências humanas, deixando para Bachelard e outros como Canguilhem  as outras ciências. Temos então a relação entre as ciências humanas, suas verdades e o exercício do poder na constituição do sujeito sujeitado. 
O sujeito de Foucault não é o que conhece, mas o que foi sujeitado através de uma dominação de sua subjetividade por uma verdade que não é a dele, mas ditada pelas ciências humanas. E ele diagnosticou o início desse processo quando eliminaram, no que ele chamou de momento cartesiano, o cuidado de si, que subordinava o conhece-te a ti mesmo, no ato de conhecer. O cuidado de si, como estamos descrevendo, é epistêmico, ético e condição fundamental da liberdade humana.
No nosso entender, o cuidado de si foi mal interpretado por talvez ser lido ao pé da letra. Cuidar de si não é tomar banho e escovar os dentes ou cuidar de coisas individuais para viver melhor. O cuidado de si originou-se, como Foucault colocou em A Hermenêutica do Sujeito, quando se referiu a um espartano que respondeu a uma pergunta que lhe foi feita: por que  os espartanos não cultivavam suas lavouras, deixando aos hilotas esse trabalho? O espartano respondeu: simplesmente para podermos nos ocupar com nós mesmos. 
Ora, o que o espartano estava dizendo era que eles precisavam treinar física e subjetivamente para estarem preparados para lutar contra tudo que os quisesse escravizar. Então, temos a primeira descrição do que é o cuidado de si: uma questão militar, ou seja, se fortalecer, o mais possível, para garantir sua liberdade. O cuidado de si é, portanto a condição fundamental de garantia da liberdade. E, assim sendo, de defesa da vida, e também, quem sabe, a defesa do dionisíaco e do apolíneo no seu equilíbrio contra o racionalismo. Por isso ele surgiu em uma aristocracia, mas não significa que ficou somente como um postulado de uma classe social porque Sócrates o incluiu na filosofia, como foi dito por Platão, no Primeiro Alcibíades.
Quando Sócrates estendeu para todos o que era privilégio de uma aristocracia, tornou o cuidado de si uma ética de defesa da vida, do homem e da liberdade no ato de conhecer. Os epicuristas, os cínicos e os estóicos, à sua maneira, o divulgaram. Foucault o politizou. Todos eles trataram da liberdade do homem através de reemergir o cuidado de si. Então o cuidado de si se tornou uma questão epistemológica, política e revolucionária: conhecer com ética e liberdade a serviço do homem e não sem ética e sem liberdade conhecer sem servir ao homem e, assim sendo, ser escravo do conhecimento, ou dito de outra maneira, escravo da verdade.
Foucault vai recusar dar à verdade um supremo poder no seu curso Do Governo dos Vivos, em 1980, no Collège de France, no que ele chamou de anarqueologia. Como disse Nildo Avelino em seu artigo Do governo dos vivos: uma genealogia da obediência:  ‘o neologismo anarqueologia foi introduzido por Foucault para ensaiar em que medida a anarquia e o anarquismo podem sustentar e fazerem funcionar um discurso crítico contra o poder’.
O cuidado de si passou a ser epistêmico porque ele é o fundamento de um método para administrar o duplo do ser  humano dionisíaco e apolíneo em ação no mundo. É, portanto, se sentir como um ser vivo com todas as suas características e necessidades que não as elimina, ao contrário, privilegia no ato de conhecer.
Assim sendo, Foucault propôs se reemergir o cuidado de si, que é o humano, portanto a defesa da vida em sua humanidade, dominando o conhece-te a ti mesmo, que é como se chama o conhecimento. Conhecer a si mesmo é o ato de conhecer, é o penso, logo existo. Assim sendo, foi para o homem o cuidado de si sua principal arma e garantia para poder conhecer e, ao mesmo tempo, garantir sua liberdade no ato de conhecer.
Ora, o que Foucault percebeu na história foi que ocorreu uma inversão e, assim sendo, o homem perdeu sua liberdade no que ele chamou de o momento cartesiano a partir de como se acessa a verdade. E como resultado temos as sociedades industriais-técnicas-científicas-burocráticas como diagnosticou André Berten.

Então mostramos como a partir daí, Foucault se afastou da tradição cartesiana e da fenomenologia, do existencialismo e do marxismo e se aproximou de outros autores que tinham como sua peculiaridade uma análise do que chamamos de razão cindida. E isso se expande com as reflexões de Pierre Clastres em sua antropologia política que se aproximou da filosofia.
Nossa abordagem do pensamento de Foucault não é sobre o cuidado de si, mas como ele usou sua metodologia, (o seu empirismo histórico), no seu objeto de pesquisa que foi (a relação entre verdade, poder e sujeito). E a partir desse ponto de vista, como um elo que une e explica todo seu pensamento, descrevê-lo para melhor contribuir para o seu entendimento.
            Advogamos que embora Foucault fez um história de seu próprio pensamento, a qual foi apresentada nas palestras dadas no Collège de France, desde o começo ele já tinha colocado suas principais reflexões. E assim foi quando ele escreveu no inicio de História da Loucura na Idade Clássica: “Ao final da Idade Média, a lepra desaparece do mundo ocidental”. Nessa frase já está, talvez, tudo. Dissemos talvez, mas acreditamos que tudo já está aí nesta frase: “Ao final da Idade Média, a lepra desaparece do mundo ocidental.” 

Muito obrigado pela atenção.




[1] FOUCAULT, Ditos e Escritos IV , 2006, p. 178.
[2] Razão cindida aqui é quando duas práticas se unem para criar uma organização de uma racionalidade e a partir daí pode se chamar de uma atividade racional ou razão. E em determinado momento, por uma série de acontecimentos, uma das suas partes passa a dominar a outra ou a excluir e assim cindir essa organização epistemológica. De certa maneira assim poderemos ler o dionisíaco e o apolíneo de Nietzsche, a teoria tradicional e crítica de Horkheimer e o cuidado de si e conhece-te a ti mesmo dos gregos que foi analisado por Foucault.